O mito do empoderamento feminista

gi del fuoco
8 min readDec 5, 2018

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Só um apelo… apenas um apelo de uma mulher de dentro do movimento.

Para quem está dentro do movimento feminista, ainda mais aquelas que realmente tem paixão, tem a sua auto percepção e tenta formar sua vida individual e coletiva através desse movimento, muitas vezes se explode com algumas posturas de leviandade das mulheres para com ele. Isso tem-se mostrado bastante acerca do tal falado “empoderamento”, de como algumas mulheres usam ele e o molda de acordo com sua necessidade plenamente particular.

Mas ai acho que ainda estamos no nível de questionar: o que é esse tal de empoderamento? E pior: o que é empoderamento dentro de um sistema capitalista? Será que é possível? Se é, como? E a pergunta chave: nós realmente somos empoderadas?

Todo mundo sabe que os anos 60 foi o início de grandes mudanças no imaginário da mulher, principalmente daquelas que gostariam de ser mais assertivas, mais comprometidas e tinham sede de mudanças quanto à sua condição de mulher. Mas foi na década de 70 que a Barbara Solomon disseminou a palavra empoderamento através do seu livro Black Empowerment: Social Work in Oppressed Communities (1978), neste livro ela vai discutir as dificuldades e os desdobramentos dos trabalhos sociais voltados para pessoas negras. Resumidamente: ela está discutindo o racismo institucionalizado na sociedade americana da época.

Uma foto da Barbara Solomon sorrindo.

Um dos principais questionamentos que este livro traz é: depois de tanto tempo nos dizendo onde é nosso espaço, o que temos que fazer, o que somos, como somos, com quem somos, será que agora “mais livres” fazemos realmente aquilo que é melhor para si e para o nosso coletivo? Será que nos EMPODERAMOS para valer? Ou estamos apenas dominando melhor as peças desse jogo que o sistema sempre nos deu?

Então, ela dá a entender que o empoderamento vai além de nos dominarmos e de apenas pertencer a um certo grupo de oprimidos, ele também está em como vamos agir individualmente e coletivamente dentro do sistema e que o protagonismo deve ser do meu eu junto ao coletivo; os sujeitos ativos devem ser sempre esses e nunca os do sistema e cia. que sempre nos oprimiu. Logo, fica claro que não existe empoderamento qualquer sem uma apropriação de si e do grupo do qual você pertence. Principalmente se é afastada das condições que a sua realidade material te dá.

E é a partir daí que despencamos num grandioso abismo que é: será que sou mesmo empoderada dentro de um sistema capitalista ou estou apenas me adaptando para me tornar um produto, ou pior, será que uso o empoderamento para autoafirmação do meu eu?

Para quem está dentro dos movimentos essa resposta é instantânea, pois nós percebemos a deturpação que fizeram com o significado do que é ser empoderada. E, por incrível que pareça, não foi só nesse meio virtual que estamos que esse questionamento veio à tona, no livro da Susan Faludi, Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (1991), causou um rebuliço quando foi lançado, justamente por expor como certas instituições recebem (mal) os feminismos e a luta por igualdade. Ele é muito certeiro, muito amplo e muito bem embasado e cruelmente assertivo. Mostra, por exemplo, como a mídia reproduz como uma nova tendência social a volta de coisas que, em suas verdadeiras caras, nada mais seriam do que retrocessos, dando ares de novidade a um discurso conservador — e retrógrado. Interessantíssimo, não?

“Ser mulher nos Estados Unidos neste fim-de-século: que maravilha! Pelo menos é o que se diz o tempo todo. Os políticos garantem que as barricadas já caíram. As mulheres “chegaram lá”. O mundo da publicidade se regozija. A revista Time proclama que a luta da mulher pela igualdade “foi amplamente vencida”. Matricule-se à vontade em qualquer universidade, arrume um emprego em qualquer firma de advocacia, solicite empréstimos em qualquer banco. Os líderes trabalhistas afirmam que agora as mulheres têm tantas oportunidades que não é necessária uma política que lhes garanta igualdade de condições. Os legisladores proclamam que atualmente as mulheres são tão iguais que já não é preciso haver emendas constitucionais para a Igualdade de Direitos. Até os anúncios de cartões de crédito estão saudando a liberdade da mulher a fim de cobrá-la. Enfim, as mulheres receberam os seus papéis de cidadania plena.” Pág. 9 do livro.

Esse tema (empoderamento) se tornou tão importante, ainda mais agora, e tão substancial, pois o emprego que ele tem demandado nos meios midiáticos distorceu toda sua comunicação com os movimentos. Dá-se a entender que hoje não é mais a mídia que contribui com a distorção desses, mas sim, os indivíduos que fazem parte de um grupo de oprimidos, tornando assim, empoderamento = abraçar sua própria identidade. Identidade essa que por incrível que pareça é um processo de fatores opressivos, uma enorme bolha da construção social, na qual todas estamos sujeitas.

E foi assim, com essa autoafirmação fantasiada de empoderamento que individualizou o conceito de maneira totalmente irresponsável e sórdida. Afinal, é muito melhor olhar apenas o nosso umbigo e fugir das cobranças e responsabilidades coletivas. E para nós, mulheres feministas ativas no movimento, sabe como isso é de dar raiva e bastante desonesto com o movimento e com as mulheres que fazem ele e sempre dão a cara a tapa para derrubar todos as regras que jogam para cima “do que é ser mulher”.

Nenhuma feminista se sente empoderada ao passar um batom vermelho, rosa, roxo, verde, após ler uma notícia de estupro coletivo, de violência doméstica, de feminicídio. Por exemplo, sei que o autocuidado com a imagem às mulheres negras sempre foi negado, pois mulheres negras, num pensamento colonialista, nem eram vistas como mulheres, mas isso, de consumir maquiagem, nunca fez com que diminuísse as opressões em cima das MULHERES NEGRAS. Logo, essa manutenção do que é feminilidade e uma nova reprodução dela só nos fez consumir ainda mais esses produtos que sempre determinou o que é ser mulher e, ainda melhor, o que é ser “uma-mulher-feminina”.

São anos de teorias e principalmente de práxis que nos diz: performar feminilidade nunca nos ajudou em nada, apenas é um indicador de autoafirmação e aceitação vinda do alheio. Nem precisamos ir tão longe ao tratar sobre esse assunto. A escritora Naomi Wolf, fala disso no seu livro “O mito da beleza” (1991).

Eu acho esse livro uma obra-prima.

“A eliminação dos sinais da idade dos rostos femininos tem a mesma ressonância política que seria provocada se todas as imagens de negros fossem costumeiramente clareadas. Essa atitude faria o mesmo julgamento de valor com relação aos negros que essa manipulação faz quanto ao valor da vida da mulher, ou seja, que menos vale mais. Eliminar os sinais de idade do rosto de uma mulher equivale a apagar a identidade, o poder e a história das mulheres.” Pág. 109 do livro.

Logo, nós sabemos que rituais de feminilidade não empodera mulher nenhuma, se empoderasse o feminismo estaria fazendo tudo errado ao tentar boicotar tudo isso, certo? Portanto, não vamos deixar que joguem no abismo todos esses anos de estudos, de gritaria, de produção vinda dessas mulheres que tanto nos ensinou.

Mas isso não tem sido fácil, pois o nosso Leviatã é um monstro que tem bastante fome, ele comeu esse conceito, mastigou e vomitou com: “meu corpo minhas regras”; “deixa ela fazer o que ela quiser”; “o corpo é dela”; “ela faz o que quiser”; “dona de mim”; “dona do meu eu”. Repararam? Apenas falas individualistas que as tiram de qualquer responsabilidade com o coletivo no qual pertencem e com isso podem sair pela lateral sem que entre em um debate sério e crítico com o movimento feminista.

Daí, vem a crítica ao “feminismo liberal” que se deixou ganhar pelo querido capeta-lismo. Mas vamos lembrar: nada disso é sobre liberdade, empoderamento, escolhas e muito menos sobre o feminismo. Embora, ele pareça ser essa coisa linda e confortável, ele só é isso, um paraíso com gliter-cor-de-rosa-e-dourado, porque não rompe com nenhuma estrutura substancial que oprime a mulher. Porém, o não a esses rituais, isso sim, chega a ser uma escolha, talvez até uma parcela mínima do que é liberdade. Aliás, a máxima que sempre trago junto comigo, como mulher, é: “liberdade é poder dizer não”.

Talvez, ao lerem isso, vocês estejam pensando: uma feminista dizendo como uma mulher deve se comportar. Sim, meus amores, uma feminista falando qual o dano que vocês trazem para mim como mulher, para as mulheres no geral, para vocês e para o movimento feminista. Todos esses rituais de feminilidade nos deixam vulneráveis, mais do que somos, afinal foi para isso que ele foi criado, ele nos cala, nos coloca em situação de mulher-passiva como sempre, algo a se enfeitar, uma-mulher-passiva-de-objetos-externos. Assim como uma árvore de natal, que só é árvore de natal se está enfeitada; nós mulheres só somos mulheres se estivermos também enfeitadas? Só vamos nos sentir bem se aceitarmos seguir essa regra e esquecer do porque isso realmente existe? Bom, essa é nossa realidade material e simbólica, dói, né? Pois é.

E o mais interessante notar é que quem se beneficiou com isso, além do patriarcado, foi o nosso querido capeta-lismo, pois agora com a independência financeira da mulher, podemos nos enfeitar com mais facilidade, afinal somos uma classe consumidora também, não é, Avon? Sabemos que capitalismo não vende só produtos; vende também ideologias, ideias, e, precisamente, as ideias que são do seu agrado, obviamente. Afinal, se tem uma coisa que o Capitalismo é, com a ajuda dos marqueteiros, é ser flexível. Ele consegue se aproximar da pessoa mais anticapitalista desse plano apenas com a sua adaptação de discursos. Ele perde a moral, mas não perde o dinheiro. E ainda, de lacradora que você é, você consegue“lacrar” “arrasar” “gritar” “urrar” em cima daqueles grupos que dançam e rimam “pelo fim do capitalismo”.

Eu, sinceramente, queria muito estar falando das nossas dores, dos nossos gozos, de como conseguimos nos aceitar naturalmente, de como dói esse processo de desapego dos rituais, de trocar experiências, conhecer novos conceitos, de como vamos fazer tal boicote, mas não, nós estamos presas a isso. É um movimento cíclico, ou um backlash cíclico.

Afinal, nada disso é um apelo para você parar de fazer essas paradas que dizem pra você fazer e que você acha que te faz bem, é apenas um apelo sem glitter, sem cor de rosa, sem dourado, para que vocês sejam honestas , responsáveis e tenham consciência do que vocês estão enraizando ainda mais nas mulheres e com qual lado vocês estão realmente contribuindo. Pois, com o nosso que não é.

Para encerrar deixo uma frase da minha mais preferida, Audre Lorde:

As ferramentas do mestre nunca destruirão a casa-grande”.

Textos apoiadores:

Barbara Solomon, Black Empowerment: Social Work in Oppressed Communities (1978).

Backlash: The Undeclared War Against American Women, 1991, Susan Faludi.

O Mito da Beleza, 1991, Naomi Wolf.

O que é empoderamento? QG Feminista.

O que é backlash? Resenha com Raíssa França.

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gi del fuoco
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Written by gi del fuoco

Como me ensinaram a linguagem, vou usá-la afiada.

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