Noche del fuego (2021): o quanto dói nascer menina?
Noche del fuego é primeira ficção da documentarista salvadorenha-mexicana Tatiana Huezo e é uma adaptação do livro “ Reze pelas mulheres roubadas” de Jennifer Clement autora americana-mexicana.
O filme dói do começo ao fim quando você sabe o que é ser menina se tornar mulher e continuar tendo estratégias nos espaços para não ser violentada. No filme temos a Ana, onde a menina tem seus cabelos cortados bem curtinhos, veste-se “como menino” e esconde-se em um buraco no quintal cada vez que homens passam por seu povoado, no interior do México, para raptar adolescentes a fim de torná-las escravas sexuais de chefões do tráfico. Uma cena que me chama atenção é a construção da relação de Ladydi com sua mãe Rita. No início não fica claro porque a mãe tem uma relação sombria com a filha, depois tudo vai ficando claro.
Rita tem medo de perder sua filha, Rita entende que ser dócil com sua filha Ana a prejudicaria em sua resistência e sobrevivência quanto ao sequestradores, além de Rita ser mãe solo, isso fica mais claro do porque as mães ali são solos quando você lê o livro, pois entende-se que os homens atravessam fronteira para os Estados Unidos em busca da realização do “sonho americano”, muitos não voltam. Ana é tudo que Rita tem. É sabido que mulheres mestiças de indígenas evitam bebidas devido aos traumas que ganham com os homens (pai, marido, filho), mas há uma cena (da foto acima) que Ana entende que Rita precisa escapar da dura realidade: proteger sua filha daqueles que a querem roubar. Simplesmente porque é menina.
Sobre Rita, a mulher antes de ser mãe, creio que ela entendeu que dignidade e honestidade são conceitos maleáveis para quem não sabe se vai comer a próxima refeição, logo esse cenário de miséria é o que facilita o rapto das meninas e também cria um cenário de violência, ela não tem medo de se defender nem de ser inteligente demais para se proteger e proteger a sua.
Isso fica claro quando Rita não deixa Ana passar o batom, no momento me causou estranhamento, dado a cena ser tão dura, logo depois lembro-me que feminilidade é sinal de disponibilidade, principalmente em uma comunidade onde meninas são raptadas todos os dias por homens do tráfico, talvez, aqui, fique claro que a não-feminilidade torna-se uma estratégia de sobrevivência.
No livro e no filme fica claro que meninas e mulheres são tiradas dos jogos de violência, não nos ensinam como lidar, mas lidamos, queremos sobreviver, assim como Ana, María e Paula. Essa sobrevivência é aprendida quase que sozinha, não tem manual, não tem instituição, não tem nada que facilitará essa sobrevivência, a não ser a companhia de outras que entendem o que está em perigo.
Quando o filme estreou, em simultâneo, vem à tona um tema marcante no país, que só em 2020 houve um registro de mais de 500 assassinatos de mulheres (ginocídio), segundo um relatório divulgado em Agosto (2021)pela organização Causa en Común.
Bom, o filme tem seu enredo girando em torno do controlo do corpo por conta da presença dos sicários, da masculinização da imagem feminina como símbolo de resistência e do medo de ser menina/mulher. As meninas ali fazem de tudo para serem invisíveis, se escodem em absolutamente qualquer buraco arquitetura por suas mães para não serem raptadas e violentadas, suas mães são suas grandes protetoras, pois sabem que não correm o risco de serem levadas, mas correm o risco de serem estupradas e mortas pelos sicários, mas, “pelo menos”, elas ficaram ali com feridas e traumas, cuidando de suas filhas, ensinando-as a sobrevivência.
Penso que educar uma menina é bem mais dolorido, você tem medo de ensinar até a autonomia de andar na rua sozinha, porque ali você é alvo fácil, quantas vezes sofremos assédios? Assédios esses que vêm desde pequenas. Dói nascer com buceta. Dói saber que suas amigas sofrem violências e amanhã podem não estar mais aqui. Dói saber que suas amigas adoecem por conta da violência masculina. Dói saber que suas amigas devem engolir um seco muitas violências por um prato de comida, um teto e um trabalho. Amigas essas falo de sua mãe também, de sua avó, de sua tia… elas são humanas, sabe, e são colocadas em uma posição de “se não cuidar demais serei a grande culpada”, entendo a Rita.
No fim, queremos sobreviver com comida, moradia, saúde, educação, sem controle dos nossos corpos, sem aparecer demais, sem se esconder demais, só ser uma menina… uma mulher… uma humana… que vive.
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