Entre Mulheres (2023): a imaginação carrega vozes de mulheres

gi del fuoco
5 min readMay 8, 2023

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Historiadora Radical também faz seus designers

Começo texto já falando algo que vocês devem achar óbvio, mas às vezes o óbvio precisa ser dito milhões de vezes principalmente em relação às mulheres — sim, eu gosto mais do nome original do filme “Women Talking (“Mulheres Falando”, em tradução literal), confesso que não entendi a tradução para cá com o nome “Entre mulheres”, visto que o filme tem uma narrativa central que é o rompimento do estabelecido através da voz da imaginação.

Embora, o filme comece de uma forma brutal, não me assusta, pois raríssimas vezes mulheres no cinema se colocam no papel de glamourizar as violências que nós sofremos, não seria o caso da Sarah Polley. Diferente do que acontece em The Handsmaid’s Tale que em algum momento sinto que a trama emana algo relacionado com soft porn, já cheguei a falar disso. Mas voltando ao filme, me sinto num vai-e-volta, não por conta do filme, mas pelo conhecimento em História das Mulheres.

O filme se passa no século XIX, onde temos as menonitas que dá a entender que representa uma espécie de religião parecida com o cristianismo, visto que estamos geograficamente no ocidente, as menonitas são constantemente estupradas pelos homens que também ocupam aquele espaço, e como é ensinado na religião, elas são obrigadas a perdoar os agressores para poderem ir ao reino do céu. Me questiono quantas mulheres ainda estão presas nessa narrativa.

As menonitas são vítimas da religião que usa da tortura e manipulação para as socializarem. Nesse último caso, a manipulação é um dos mecanismos mais fortes que o patriarcado tem, estamos a todo momento sendo guiadas pela manipulação, a nossa vida cotidiana é alianante, desde a hora de acordar até a hora de dormir. Aqui lembro-me que a primeira vez que ouvi a palavra “alienação” tinha 15 anos com o Emicida antes dele ser famoso em uma batalha de rima, usei a mesma palavra para escrever uma redação na aula de português, o professor Thiago leu minha redação e disse para mim: “nossa, você usou a palavra alienação, muito bom!”. Lembro que o tema era sobre o poder das mídias em nossas vidas, e o que é o patriarcado se não uma grande mídia? Desde os contos-de-fadas aos filmes de comédia romântica à novelas da globo que as mulheres assistem depois de um dia cansativo de trabalho. Essas mulheres ainda existem, elas não estão chegando do trabalho e abrindo uma Gerda Lerner para ler, não a maioria das mulheres.

Então, penso que o filme nos mostra, primeiramente, como a manipulação cria ferramentas de nos paralisar, de nos deixar sem movimento, de nos deixar em silêncio, de nos deixar cegas. Sempre pergunto: você sabe a história de vida da mulher que te criou, educou? Muitas nem imaginam a história da vidas de suas mães, avós, bisavós. Muito disso acontece porque nossa imaginação é cooptada pelo sistema opressor, não somos férteis para imaginar nossas vidas, somos férteis para dar a vida… a eles. E quando saímos desse modo de manipulação e tortura, recebemos a morte. Sim, você viverá enquanto der vida, se for a vida, partindo da ideia de que só tem vida quem não é prisioneira, você recebe a morte. Homens continuam matando crianças e mulheres.

Então, como mudar esse roteiro?

Imaginando.

A imaginação é além de um conceito é uma ação em que mulheres se encontram e criam estratégias para a sua vida. Lembro-me de Angela Davis, em uma das aulas que dei sobre ela, ela diz: “usem da imaginação e permitam-se sentir…”. É uma das coisas mais bonitas ao meu ver, pois vendo que muitas de nós temos um histórico de colonização escravagista, penso quantas das nossas imaginaram um dia serem livres? E o quanto elas pensavam não se possível deixar de ser escrava? Sei que a luta ainda não acabou, mas quantas imaginações quando tomadas por vozes não criou ações?

É assim que enxergo as mulheres do Mulheres Falando imaginar é uma arma para nós. A imaginação, ao contrário do dizem, não é idealista, é uma realidade, ou melhor, algo que desejamos que se torne verdade, a imaginação é motor para a ação.

Todos os dias eu acordo e me imagino longe da pobreza, longe da misoginia, longe do racismo, isso me move. Eu ainda estou aqui. Quantas de nós estamos aqui? Quantas de nós viveram suas VIDAS desejando isso? Eu consigo contar mais de 200 mulheres de cabeça, mas são mulheres. Milhares de mulheres que imaginam juntas se libertam juntas, se movem juntas, se escutam, se enxergam.

Percebam que nesse texto eu misturo 1ª pessoa com 3ª pessoa, porque eu também escrevo para mim, eu também sou minha amiga, e acho que a Sarah Polley conseguiu trabalhar tão bem cada personagem de forma individual além do grupo.

Creio que sou uma mistura da Salomé (Claire Foy) que é raivosa, Mejal (Michelle McLeod) que tem ataques de pânico e se apoia no cigarro, assim como muitas mulheres desenvolvem vícios, eu já tive os meus, e ainda posso vir a ter, hoje estou tranquila, e Mariche (Jessie Buckley) é cética e cínica na mesma medida. Eu sou isso. Somos isso.

As mulheres anseiam por futuro ao usar da imaginação, futuros que muitas vezes são completamente diferentes, visto que cada uma lidamos com as situações de formas diferentes, mas o interessante é entender que nada disso tira o centro da questão: a ação.

Se eu luto pela liberdade quem sou eu para falar da liberdade da outra em tom autoritário? Isso cabe quando resumimos toda a ação das mulheres em “liberalismo”; “feminismo liberal”, quando muitas delas não sabem exatamente o que estão fazendo porque estão sendo manipuladas, nosso papel é continuar apenas nosso trabalhos e deixar um caminho aberto, um canal uma janela e uma porta para que possamos ter cada vez mais mulheres se unindo na imaginação livre e entendo que isso é um poder de ação.

Continuo acreditando que estamos nos movendo, assim como mulheres se movem há séculos, mas é um caminho longo, cansativo, obscuro (assim como a fotografia do filme), não tem cor a realidade, mas nossa imaginação sim. Nossa ação é colorida, gosto quando Monique Wittig fala: é negra. Que é a força de todas as forças e cores.

Gerda Lerner nos ensina algo tão importante sobre a nossa história que é sobre ter memória social, saber que sempre estivemos lutando e que, sim, as coisas mudam, então as formas de lutar também. Mas a imaginação continua lá.

A imaginação continua me permitindo que eu esteja aqui, que eu enfrente todos os danos causados a mim, às minhas, a imaginação é minha amiga porque é amiga das mulheres.

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Abraços científicos,
@historiadora.radical

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