Chapion (2024): sendo funcionária da sua família e fracassando na sua vida

gi del fuoco
5 min readFeb 29, 2024

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Sim. É issso mesmo que você leu.

Imagem: Site Oficial Netflix

Sempre reflito sobre a necessidade de conforto simbólico. Nunca dei muita importância a isso, pois me identifiquei como ateia desde muito cedo, e para mim, o conforto simbólico estava principalmente relacionado à prática religiosa ou algo semelhante. Nunca considerei como a arte, especialmente a produzida nas periferias e por pessoas de origens econômicas desfavorecidas, poderia ser uma fonte desse conforto.

Antes de abordar a série, gostaria de compartilhar um pouco sobre minha relação com a cultura negra e latina. Crescer na periferia, notável no mapa devido ao maior grupo de rap da América Latina, tem suas vantagens.

Penso que pertencer a uma família de baixa renda também tem seu lado interessante: compreender tão profundamente a cultura popular. A música me conecta muito com as minhas raízes. Quem diria que foi ouvindo Calcinha Preta que eu aprenderia sobre o Roxette?

A música também foi responsável por despertar meu interesse pela politização. Se não fosse por alguns artistas, certas músicas, letras e batidas, eu não teria me envolvido tanto com a história cultural. Logo em seguida, quase de forma simultânea, veio a experiência audiovisual. Os videoclipes que assistia nos DVDs piratas do Black Charme me proporcionaram uma estética de vida única.

E carrego isso comigo até hoje. E quero afirmar que sim, tenho a minha fé em algo — o meu conforto simbólico — a cultura periférica. Tudo que dela se originou. Algumas manifestações me identificam mais, como o hip hop, o funk e outras expressões. Mas é nelas que encontro meu conforto.

E sinto-me muito feliz por isso ter me proporcionado uma capacidade fascinante de analisar a cultura de massa — sem nostalgia, preconceito ou superioridade — apenas analisando e vivenciando o processo de análise cultural. É extremamente gratificante. Assim como escrever resenhas sobre as coisas que assisto. Talvez devesse começar a escrever resenhas dos shows que frequento também, não é? Estive pensando nisso agora, já que este ano assisti a shows incríveis. Bom… vamos lá?

Falar sobre Champion é falar de um contexto particular — a vida de uma mulher que desde criança trabalha para a família. Fico pensando se isso ocorre nas famílias de classe média, classe média alta e elite: filhas que são empregadas da própria família. Acredito que não. Imagino que o mais comum nessas famílias seja a mãe assumir o papel de empregada e se responsabilizar por permitir que a filha seja livre — ou seja, representar aquilo que ela própria desejava ser.

É como vejo.

Nas famílias pobres, conforme retratado nas obras maravilhosas de Alice Walker, Toni Morrison e bell hooks, em especial bell hooks:

Ela relata que em sua casa, ao mesmo tempo em que era elogiada por sua sabedoria, inteligência e perspicácia, também era rotulada de louca por possuir tais características, e que eventualmente acabaria sozinha por expressar opiniões sobre tudo.

Ela completa dizendo que sua inteligência só era valorizada quando estava a serviço dos outros; quando se tratava de usá-la para si mesma, era vista como algo negativo.

Isso não é diferente na vida de Vita Champion, interpretada por Deja Jeona Bowens. Vita é a irmã mais nova que terá sua vida sacrificada para que a de seu irmão, Bosco, interpretado por Malcolm Kamulete, tenha sucesso.

Este é o poder do audiovisual, mas um audiovisual honesto que não idealiza ou romantiza as situações. Por muito tempo, vimos uma cultura negra retratando mulheres apenas como reprodutoras destinadas a perpetuar a cultura negra, conforme observado por Angela Davis em seu livro genial Mulheres, Raça e Classe.

Em famílias pobres, é comum a ideia de que apenas um membro terá sucesso — isso se deve à falta de recursos, já que não há como prover para todos. Assim, dado que o mundo público é voltado para os homens, investe-se neles.

O sistema educacional também foi moldado dessa maneira. Na Idade Média, apenas meninos tinham permissão para frequentar a escola e estudar disciplinas como matemática e afins. Discutimos isso no Clube Libertárias de Teoria e Leitura em 2023, lembram?

É uma narrativa antiga, um acordo que persiste. Não me surpreende saber que os homens levam mais tempo para sair de casa do que as mulheres. Elas estão mais dispostas a arriscar, pois sabem que se permanecerem em casa podem ser apenas subordinadas, com suas vidas relegadas ao segundo plano. No entanto, em suas jornadas, não têm gandulas como os homens têm, não apenas no contexto do futebol.

O mesmo se aplica a Vita; ela precisa deixar sua casa para buscar sua própria vida. A parte mais inspiradora é que ela está ciente de suas escolhas — não há lamentações pelo que poderia ter sido. É o que é. Isso é muito característico de quem é pobre. Não lamente, faça. Isso tem um lado bom e ruim, mas geralmente dá certo.

Imagem: Site Oficial da Netflix

Fiquei impactada como a série mostrou a Jamaica, com certeza, estará em um dos meus próximos destinos de viagem, visto que amo reggaeton e minha meta é conhecer toda Abya Yala e Caribe. Aqui, agora, quero mencionar A DIRETORA NIGERIANA FODA: Joy Gharoro-Akpojotor!

Imagem: Deadline

Ela, com certeza, sabe o que está fazendo. Recomendo os trabalhos dela, viu? Não só Champion, mas tem For Love (2021), Gangues de Londres (2019) e Um Natal Entre Nós (2021).

Fico feliz de estar colaborando sempre em indicar mulheres e lésbicas em meus trabalhos e eu sei que vocês sempre se interessam.

Bem, eu queria dizer que o pai de Vita e Bosco é um babaca, não é? Ele realmente soube como sacrificar todos, não apenas as mulheres, mas todos ao seu redor. Ele depositou em Bosco todos os seus fracassos, ao ponto de reproduzir sem erro a cultura patriarcal, o que acabou afastando a mãe de sua filha.

O pai, Beres, interpretado por Ray Fearon, e a mãe, Aria, Nadine Marshall, são o típico casal divorciado. Mas não apenas isso. Eles representam o tipo de casal em que o homem usa seu poder para limitar a vida da mulher. Como Beres pôde mentir tanto sobre ter tido outro filho? Essa discussão é interessante quando abordada na série.

Bom, acho que falei demais já.

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Netflix, me nota?

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