Capitã Marvel: uma heroína digna ao
feminismo liberal

gi del fuoco
8 min readMar 20, 2019

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O feminismo liberal deturpa todo o significado do que é ser uma mulher feminista, até no mundo da ficção. Esse texto tem spoiler.

Imagem: Espaço Nerd

Graças a minha curiosidade em saber cada vez mais sobre o que chamam de “representatividade feminina” fui atrás de saber sobre Capitã-Marvel já que o filme acabou de estrear. Confesso que não me interesso o bastante para saber todos os detalhes da história de Carol Danvers. Assim como não sei tudo da famosíssima Mulher-Maravilha. Mesmo sendo pesquisadora feminista, o tema nunca foi interessante o suficiente. Nunca veio até mim, inclusive. As pesquisas feministas não se direcionam a isso. Se você quer entender essa área; você já deve vir dela antes de ser feminista. Sei que isso acontece devido a excessiva estereotipação que os homens dão ao representar essas mulheres e sei que muitas mulheres também reproduzem essas fantasias no universo das HQs. Em suma, é um universo de uma visão só quando se trata de mulheres. Afinal, a indústria dos quadrinhos como toda e qualquer indústria nesse mundo capitalista projeta o que o patriarcalismo é e quer.

Antes de tudo quero fazer uma linha do tempo para vocês entenderem melhor quem foi Carol Danvers, pois sei que muitas que me leem sabem tão pouco quanto eu, logo, como não sou nerd, será uma linha do tempo mais simplificada sobre uma personagem que vocês verão na vida:

Imagem: Del Fuoco Planilhas

Observações do filme quanto feminista:

Deixando claro que a análise aqui é com um viés totalmente feminista, não qualquer tipo de viés feminista, mas um viés de feminismo materialista. Portanto, adianto que Capitã-Marvel não é um filme feminista, não desse que falo.

O que mais notei é que essa super-heroína pode fazer com que as pessoas possam vir amá-la de forma inequívoca: não por seus poderes malucos que ofuscam o resto dos Vingadores, pelo menos pra mim, mas pela natureza conflituosa de sua personalidade. Carol é uma solitária, uma rebelde, assim como a maioria dos rebeldes, e enfrenta um grande tumulto interior diante da perspectiva de liderança e ainda mais para o DNA alienígena dentro dela. Ela é assombrada por um ímpeto interior de subir mais alto, mais rápido, o que faz dela uma força imparável, mas seu instinto de cuidar e proteger as poucas pessoas que ela “tem como família” é ainda mais forte. E ela não sabe o que fazer consigo quando elas “morrem”.[1]

[1] Segundo Arcano Oilveira, esse estereótipo já estava presente em outro personagem de HQs, também do exército Hal Jordan, o Lanterna Verde, a família no caso é o exército.

Perguntei-me…

O que é feminismo? O que é feminismo neste universo das HQs? O que leva o filme ser feminista? Posso substituí-la por um homem? O filme pode ser considerado feminista por não sexualizar a personagem e nem pô-la em par romântico heterossexual? Isso não é o mínimo que se deve fazer no século XXI? Ela vive em um mundo patriarcal? Quem ela combate? O machismo? A misoginia? Abusadores? Ela está ali para libertação das mulheres assim como o feminismo raiz está?

Embora, eu ache que é um bom filme de super-herói/heroína, fica apenas nisso mesmo. Uma equiparação de que uma mulher pode sim fazer o mesmo que um homem, ou na ficção, ter mais poder que ele. É o que o feminismo liberal acredita: “feminismo liberal também conhecido como feminismo igualitário ou feminismo universalista, é uma forma individualista da teoria feminista, que incide sobre a capacidade das mulheres em manter a sua igualdade através de suas próprias ações e escolhas, e propõem mudanças nos sistemas jurídicos, mas não mudanças nas estruturas sociais. No século XVIII temos Mary Wollstonecraft, que tem como seu trabalho mais conhecido o livro Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher (1792), no qual, no contexto da Revolução Francesa que tinha como lema “liberté, égalité, fraternité”, ela argumenta que as mulheres não são, por natureza, inferiores aos homens, mas apenas aparentam ser por falta de educação e escolaridade. Ela sugere que tanto os homens como as mulheres devem ser tratados como seres racionais, e concebe uma ordem social baseada na razão, assim a igualdade será alcançada. Atualmente temos Hilary Clinton, foi a primeira-dama a ter uma pós-graduação e ter sua própria carreira profissional até o momento em que passou a morar na Casa Branca. Ela também acredita que igualdade entre o homem e a mulher virá a partir de mudanças no sistema jurídicos. Não é atoa que é advogada e presidenta da Fundação Clinton (local para meninas e mulheres se “empoderar”).

As feministas liberais argumentam que a sociedade detém a falsa crença de que as mulheres são, por natureza, menos capazes intelectualmente e fisicamente do que os homens; assim, tendendo a discriminar as mulheres nas instituições acadêmicas, no fórum e no mercado; as feministas liberais acreditam que “a subordinação feminina está enraizada em um conjunto de restrições habituais e legais que bloqueiam a entrada das mulheres para o sucesso e na chamada esfera pública” e se esforçam para enfatizar a igualdade entre homens e mulheres através de uma reforma política e jurídica; ou seja, um reforma no sistema capitalista já seria suficiente para atingir seus objetivos de igualdade.

O erro das feministas liberais é que elas acabam ignorando todo e qualquer fator biológico, cultural, social, classista, racial que explora a mulher, tal como a maternidade[2] e performance de feminidade [3] em todos seus aspectos físicos e psicológicos.

[2] Para o feminismo radical, a maternidade, inclusive a compulsória, não se trata apenas da imposição patriarcal pra que toda mulher complete seu ciclo de existência gerando filhos. Mais que isso, a maternidade compulsória obriga, especialmente mulheres pobres, a todos os cuidados e educação das suas crianças, não só com os filhos, mas com todos ao redor. Mulheres mães são mães em tempo integral, enquanto que os homens que são pais permanecem homens, indivíduos ativos e livres socialmente. Por isso e por outras, a maternidade no sistema patriarcal, é uma das “fontes” de exploração sexual feminina. Já a palavra “mãe” carrega um significado histórico e material, não é só um termo romântico.

[3] Para o feminismo radical, performar feminilidade, não é só usar maquiagem e se depilar para esconder todo seu fenótipo natural, mas também, é todo esse ritual que coloca a mulher como ser extremamente emocional, maternal, compreensiva, apaziguadora, dócil e comportada.

Já como contraponto, as feministas radicais acreditam no que a escritora americana Collete Dowling diz em O mito da Fragilidade, ela explica que com a sedentarizarão e a domesticação das fêmeas humanas, as mulheres ficarem presas ao “lar” e não se desenvolveram como os homens que trabalhavam fora e usavam a força, assim aperfeiçoando seus músculos e seus ossos e aprendendo criar imunidade biológica e psicológica.

No filme da Capitã-Marvel podemos entender essas forças [liberais] como, simplesmente, superpoderes e o controle desses. Ela está de igual para igual. Ela nem menstrua! Mesmo tendo um lado de humana! Incrível, não? Embora suas emoções sempre aparecem e a deixa vulnerável, né? Mas entendo, Tony Stark é um alcoólatra. Mas queria saber se ela tem TPM?!

Logo, particularmente, fico irada da vida de como as indústrias sempre parecem perder o caminho na tentativa de capitalizar as políticas sociais, e acabam, esquecendo de uma das regras mais fundamentais do bom trabalho: mostre, não conte. E para isso deve-se atentar a todos os detalhes.

Se algo é uma coisa, então a melhor maneira de demonstrar essas propriedades é simplesmente fazer o negócio ser aquela coisa. Não ir sobre o negócio e proclamar o que é. Se não tivessem uma apelação dizendo que Capitã-Marvel é um filme feminista e se não tivéssemos nessa onda de feminismo mainstream, você diria que é um filme feminista?

Se você tem que anunciar para as pessoas quem você é e o que você acredita, você nunca será tão eficaz em fazer as pessoas acreditarem em você como se você se concentrasse em ser e fazer essas coisas. Mostre, não conte.

Em sua ânsia de mostrar ao mundo como é ser feminista (com o objetivo de fazer esse papel), a Marvel neutralizou o melhor potencial para demonstrar o feminismo genuíno. O que é um erro enorme! O que ela faz, no mínimo, é ser desobediente como uma criança, logo, para concluir, nada mais nada menos: eles criaram uma heroína-passiva que pode ser desarmada se for levada para o emocional. Isso me impressionou quando ela realmente acredita e se emociona com os Skrulls e entende de maneira afetiva de que eles não são inimigos, pelo simples fato de que Talos fica todo fofo com sua família, mesmo depois de tê-la invadido sua mente. Eu jurava que a qualquer momento ele iria ataca-la no filme. Até me assustava. Também pensei como ela pode pegar leve com isso e acreditar no que me parece uma falácia de cunho emocional? Jogada baixa. Percebi também que a todo o momento ela está na defensiva e querendo mostrar que pode se controlar. Achei terrível a cena em que ela está em pé num bar conversando com um cara segurando seus punhos… simplesmente inexplicável. Mas com os Skrulls que até então eram inimigos ela fica de boa, nem desconfia? Ou é apenas inteligência emocional que eu não consegui entender? Ou apenas a heroína compreensiva?

No filme também, somos apresentadas à melhor amiga de Carol, Maria Rambeau, mãe de Monica Rambeau. Isso coloca muito do foco da história na amizade entre Maria e Carol, que voaram juntas como pilotos e que ambas trabalharam para criar a filha de Maria, Mônica. É outra reviravolta refrescante do ritmo padrão; em vez de ver Carol ter um caso de amor idiota com seu mentor masculino, sua evolução emocional e manifestação de amor vêm na forma de amizade e o pior: tem nuances de uma maternidade. Se a ideia era mostrar a união de mulheres: falhou. Carol está em um mundo, Maria noutro.

Outro ponto que notei é: como ela tinha cabelo grande sendo pilota da Força Aérea dos EUA? Alguém avisa que esse lugar é um inferno para mulheres até hoje? Inclusive é um terreno fértil para estupro de mulheres que servem ali.

Esse filme deveria ser uma maneira da Marvel de mostrar que os super-heróis femininos são um elemento permanente e importante em seu universo cinematográfico. Como dizem. O único problema é que eles se esqueceram de criar uma personagem que realmente defende o feminismo de maneira real. Caso contrário não diga que é feminismo ou diga qual feminismo está representando.

Para concluir, outra coisa que se deve deixar claro é: Capitã- Marvel não deve ser associada ou posicionada como “Pantera Negra de 2019”. Capitã-Marvel precisa ficar em seu próprio terreno. Não deve ser submetida a uma luta em coliseu de minorias versus minorias. Ambos os filmes têm suas próprias histórias para contar, e eles devem ter seu espaço, tempo e maneira para deixar isso transparecer.

Mas, com base com tudo que vi na campanha de marketing da Marvel sobre Capitã Marvel, inclusive de feminista, e no próprio filme nada pareceu refletir sobre o que realmente significa ser uma mulher, muito menos, uma mulher feminista pilota da Força Aérea dos EUA e que tem poderes alienígenas.

Se eu tivesse o poder da Capitã-Marvel e me declarasse feminista mesmo: ai-ai, o que seria desse mundo. Ou melhor, não seria.

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Written by gi del fuoco

Como me ensinaram a linguagem, vou usá-la afiada.

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