Bela Vingança, cultura do estupro e o complexo de Cassandra

gi del fuoco
4 min readApr 21, 2021

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Cassandra (Carey Mulligan)

Primeiro que Emerald Fennell mandou muito bem quando quis que a fotografia do filme desse uma alusão à ideia de conto de fadas. A Cassandra sendo meio angelical nos deixa questionando do porquê ela está fazendo tudo aqui, do porque ela não segue só a sua vida. E aí está a resposta.

Dentro da cultura do estupro qualquer mulher pode ser estuprada. Principalmente por príncipes.

Cuidado, nesse texto há spoilers.

No filmes mostra tudo de maneira direta, de forma ácida e como deveria ser. Isso pode nos dar uma percepção de que Cassandra enlouqueceu, pois é isso que fazem com mulheres que sabem falar e agir. Quantos filmes de ação você já assistiu onde há um homem sedento por vingança mas você nunca o chamou de louco?

O absurdo nesse filmes não existe, pasmem. Seria absurdo não ter frases clichês que as mulheres escutam, pelo menos, uma vez em sua vida.

Cassandra é uma de nós.

Ela quer vingança, mas não tem os mecanismo certos em sua disposição e isso reflete em dois caminhos: mulheres que vingam arquitetam seu suicídio.

O peso de saber que você pode ser estuprada a qualquer hora do dia, independente da sua roupa, independente se está bêbada ou não, se foi na escola, se foi em casa, se foi no bar, se foi na rua… ah, é cansativo.

E Cassandra entende tudo isso. Ela não só teve um sequestro de memória, mas como teve que viver relembrando de tudo que aconteceu com sua amiga para que pudesse continuar, ela teve sua vida roubada, sequestrada.

Mulheres que sofrem abusos, principalmente quando jovens, devido aos traumas vão para prostituição para tentar ressignificar aquela memória, muitas mulheres fazem isso e isso é violência.

Cassandra quando mostra aos homens que eles são estupradores em potencial, ela nada mais que está reforçando a ideia de que a cultura do estupro existe. Isso é cultura do estupro, a situação mostra que há uma cultura dominante que pode sim influenciar o que um homem pode fazer com um corpo de uma mulher, principalmente se ela estiver vulnerável, tipo bêbada. Coisa que deveria ser normal, mas não para uma mulher.

Pergunto: quantas vezes vocês homens tiveram medo de ficarem bêbado (o mínimo) e alguém te estuprar?

Pergunto: quantas vezes vocês mulheres tiveram medo de ficarem bêbado (o mínimo) e alguém te estuprar?

Pergunto: quantas vezes vocês homens tiveram medo de pegar transporte público sozinhos?

Pergunto: quantas vezes vocês mulheres tiveram medo de pegar transporte público sozinhos?

Pergunto: quantas vezes vocês homens tiveram medo de serem julgados pelas suas roupas?

Pergunto: quantas vezes vocês mulheres tiveram medo de serem julgados pelas suas roupas?

A cultura do estupro grita.

Até mesmo em casa mulheres que moram sozinhas tem suas residências invadidas, bem como aconteciam em Veneza no século XVI onde era comu haver estupros coletivos para punir as mulheres solteiras.

Parece que não mudamos muito, não é, o estupro continua sendo uma arma instrucional, consciente inconsciente contra as mulheres.

O filme mostra que não é só o ato que é violentador, não só a penetração, não só o nu, mas também os olhares que objetificam a mulher ao ponto dela se tornar qualquer coisa para que o homem se livre do desconforto, da moral, dos julgamentos para poder apalpá-la.

Você continua ainda vendo vídeos de mulheres sendo expostas bêbadas? Ou melhor de qualquer mulher? Saiba que você está colaborando com a cultura do estupro.

Você continua transando com mulheres bêbadas? Com mulheres com efeitos de remédios como Nego do Borel fez? Saiba que você está colaborando com a cultura do estupro.

Pois é.

Cassandra não tem esse nome à toa, embora fuja da ideia da cultura cristã pela qual a mulher carrega culpa até se acorda e se olha no espelho, esse nome vem da mitologia grega.

Isso acima fica claro quando ela usa da chantagem para fazer a diretora da escola se sentir como ela se sentiu quando sua amiga foi estuprada na mesma e ainda sim não problematiza a situação. Então ela sabe que para sensibilizar algo à sua dor, você precisa magoar e terrorizar aquela pessoa.

Sobre o mito de Cassandra:

Cassandra tornou-se uma jovem de magnífica beleza (como quase todas na mitologia grega), devota e servidora de Apolo. Foi de tal maneira dedicada que o próprio deus se apaixonou por ela e ensinou-lhe os segredos da profecia. Cassandra tornou-se uma profetisa, mas quando se negou a dormir com Apolo, ele, por vingança, lançou-lhe a maldição de que ninguém jamais viesse a acreditar nas suas profecias ou previsões.

Cassandra passa a ser considerada como louca ao tentar comunicar à população troiana as suas inúmeras previsões de catástrofe e desgraça.

Não tão diferente do que acontece no filme, a mãe de Cassandra acha que um casamento pode ser a cura da filha, ou filho ou um emprego bom. Tenho certeza que vocês já foram questionadas por isso.

Você sabe o que é a síndrome de Cassandra? É quando uma mulher diz algo e é desacreditada, por bem, ser uma mulher com opiniões, tal como Cassandra quando negou-se a dormir com Apolo e sofreu as consequências. Sendo taxada de histérica, atualmente de louca.

Pois, a história tem repetições de narrativas e as das mulheres nunca fogem muito disso.

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Beijos.

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Written by gi del fuoco

Como me ensinaram a linguagem, vou usá-la afiada.

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