As mulheres de Lovecraft Country, 2020 | 1ª Temporada

gi del fuoco
10 min readOct 26, 2020

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O terror das máquinas são os corpos descontrolados sistematicamente. Queria dizer que adorei a coreografia e como essas meninas me deixaram tensa.

Primeiramente gostaria de agradecer a insistente indicação do @Arcano Oliveira, tendo em vista que se fosse pela capa divulgada, eu jamais me interessaria, embora fosse um universo que eu gosto muito; terror e sci-fi, o fato de ser O Atticus (Jonathan Majors) na capa me deixou muitas dúvidas, muitas mesmo. Mas ao assistir a série, devorando 6 episódios em um único dia, me pergunto: quem é Atticus ali?

Depois de ver também que era uma criação de Misha Green, que sempre me mostrou uma cineasta muito interessante, eu resolvi dar atenção ao que mais dou atenção: as mulheres.

Sim, as mulheres na série são negras e são distantes de mim enquanto etnia. Eu nunca sofri racismo, nunca vou experienciar isso, por isso a importância das narrativas, vindo desde Audre Lorde, bell hooks, Alice Walker, Ava DuVerney, Yasmin Thayná, Adélia Sampaio, Maya Angelou, Patricia Hill Collins, Octavia Butler, Nikki Giovanni… eu sei o quanto foi importante as produções dessas mulheres e a existência e resistência delas para eu entender a diversidade de mulheres, inclusive daquelas que me criaram, meu núcleo familiar.

Mas volto a pergunta quem é Atticus ali?

Um cara que precisa existir para mostrar que toda violência pode ser justificada, e não estou falando de violências dominantes, mas das violências predestinadas. Atticus precisou ser a versão melhor do seu pai, que é um homem negro e gay nos anos 50, se ainda hoje é complicado se assumir, imagina nos anos 50? Como lidar com isso a não ser se defendendo violentamente? Quem ensinou-lhes a ser diferentes? Ninguém, provavelmente. Atticus aceitou isso, porque também não foi ensinado diferente, ainda mais quando participa do exército americano, por isso a importância das mulheres, pois elas vão quebrar esses ciclos de violências, falo de mulheres negras.

Não vou continuar mas nesse assunto, quero falar dos linchamentos.

Crianças negras são linchadas porque são negras.

O afro-americano Emmett Till foi linchado aos 14 anos por supostamente ter “mexido” com uma moça branca.

Temos duas problemáticas:

- Homens não deveriam mexer com mulheres como se fossem públicas.

- Mas quem são esses homens, no caso, um menino, que está sedo punido por esse comportamento?

A Carolyn Bryant, a suposta vítima do garoto, afirmou a história de assédio e assim assinou a morte de Boo (como era conhecido).

Isso me fez lembrar de algumas histórias, uma delas é o porquê de mulheres negras lidas como feministas defenderem homens negros, talvez por isso?

A outra história é uma vez critiquei os Racionais Mc’s por conta das suas letras misóginas dos anos 90 e que isso refletia muito no comportamento dos “maloqueiro” que eram os caras com que eu me relacionava, ué, tô mentindo? E aí veio uma porrada de gente dizendo que isso é geracional, será? Se fosse não havia misoginia em 2020, né? Aliás, no Atlas da Violência de 2019, diz que as mulheres estão sendo estupradas a cada 9 minutos, não mais a cada 11 minutos, no Brasil, a maioria mulheres pobres e meninas pobres, a maioria negras.

Quem são os violentadores?

Eu sempre me pergunto isso, pra ir direto ao ponto e não colaborar com discursos quem dão brecha para dominantes. Eu dizer que o cara que mais me violentou foi um menino negro ajudaria em algo? Mas o que mais me apoiou também é um negro, e aí?

Logo o problema é: o que a socialização do homem corresponde.

Hippolyta Freeman (Aunjanue Ellis)

Ser mulher é foda pra caralho. Imagina ser mulher negra nos anos 50, ser esposa, ser mãe, entender que você não é aquele modelo de mulher branca que estampam capas de revistas e mesmo assim você faz muito mais que elas sem ser elas? Saber que o que está escrito ali é também sobre sua condição de mulher, mas nem tanto?!

Talvez não entenda a Hipolyta enquanto mulher negra, mas me vi assim quando vi que era mulher pobre e muitas no feminismo eram mulheres de classe média. Assim como Hipolyta, ela tinha uma casa, privacidade com o marido e era letrada. Quem eram essas mulheres letradas nos anos 50 nos Estados Unidos da América?

O que é importante saber, só quando se ganha privacidade a gente sabe o que realmente nos faz, nos prestigia, nos dá prazer, de si para si, logo o episodio 7 é incrível mesmo, o processo, um tanto questionado quando fala-se de Josephine Baker, mas ainda sim um modelo alcançável, quando na série fala: eu me tornei aquilo que os homens brancos sempre souberam que eu iria me tornar, me doeu, sabe? Trazendo a narrativa para mim eu sabia o que os homens e as mulheres adultas queriam que eu fosse quando adulta por conta de ser eu considerada bonita: “quando ela crescer ela vai dar trabalho!”. Até dou, mas como algo que eles nunca puderam imaginar que seria tão boa, ser uma mulher intelectual, não só um rosto bonito, que, claro, me ajuda ás vezes, mas mais atrapalha.

Então os processos de descobertas das mulheres são sempre muito doido, bonito e feio, agoniante e confortável, sei lá, é poderoso, mas ao mesmo tempo não é, mas é importante, muito importante. Acho que Hippolyta conseguiu transmitir isso. Você sabe quem é você? E o que seria dos outros sem você? A gente faz troca, por mais solitária que você ache que é, você não é, já pensou? O que seria de todos eles ali sem a Hipolyta e o que seria da Hipolyta se ela não se questionasse? O que seria de nossas vivências sem essa série de “dimensões” que nos colocamos? Às vezes acertamos, outras erramos, mas lidamos.

Eu vi o processo de libertação de cada mulher, inclusive de questionar seus amores, sendo um homem ou seus filhos, eu poderia passar horas falando sobre isso, eu valorizo muito isso, eu valorizo o nosso individualismo, o individualismo feminino, o individualismo da mulher, a mulher.

Hippolyta Freeman, Lovecraft Country

Christina Braithwhite (Abbey Lee Kershaw)

Tenho certeza que todo mundo, em algum momento, se solidarizou com ela, porque ela também tem suas problemáticas enquanto membra da família Braitwhite, ela nunca foi vista com poder desta por uma única razão: ser mulher. Há um diálogo interessante dela com Atticus sobre, logo a série e muito honesta sobre o tratamento dado às mulheres, mas ainda sim ela é uma mulher branca nos anos 50 e que teve seu poder legitimado por um homem. Mulheres que tem poderes “dados” por homens se mostram sempre como grandes aliados… dos homens. Então, concordo com o seu fim, pois elas sabem o que tem a perder se se alinham com o outro lado.

É uma personagem muito interessante: porque, embora ela seja quem seja, ela busca entender tudo o que está fazendo, tudo o que está acontecendo, ela sente, o que também é muito honesto: vocês sabiam que as mulheres são as que mais se dedicam a entender solidariamente os problemas sociais? O feminismo explica.

Mulheres sempre se doam demais, mas nem isso fez com que o seu objetivo fosse minado, muito pelo contrário, ela entendeu ainda mais quem era.

Christina Braithwhite, Lovecraft Country

Ruby Baptiste (Wunmi Mosaku)

O mais interessante é saber como ela se liga com a Christina. Leia novamente o último parágrafo: ela entendeu quem ela também era. Se isso vale para uma, também vale para outra, pensar diferente é duvidar da capacidade de racionalidade de uma mulher, sabe? E vi críticas por aí que fazem da Ruby uma mulher ingênua, mas não, ela só queria fugir de um caminho já determinado para uma mulher negra mesmo que esse caminho o leve à Christina, ainda é um caminho, você aceite ou não, achar que toda negra deve entender liberdade da mesma forma, é, no mínimo, limitante demais. Todas negras pensam igual? Todas as mulheres pensam igual? Acho que não, ainda mais nos anos 50 que as capacidades materiais também eram limitadoras para cada mulher ali. Ela não queria ser cantora, e aí? O que fazer? O que dar à ela? O que tinham a oferecer?

Ruby Baptiste, Lovecraft Country

Ji-Ah (Jamie Chung)

Quantas mulheres não se apaixonam por quem as agrediu? Porque vivenciaram as mesmas dores e por isso se compreendem? Vale lembrar quem é ela na narrativa, se nos anos 50 havia segregação racial nos EUA, o exército também, majoritariamente de negros, matou muitas outras etnias, inclusive da mesma de Ji-Ah, corenana.

Embora eu ache que o corpo da atriz foi explorado de forma negativa na série, em questão de fotografia mesmo, muita exposição gratuita, vale lembrar que graças a ela muito da humanidade de Atticus foi lembrada e muito da humanidade dela também foi lembrada, pois até então era uma enfermeira kumiho.

Além disso, me lembra uma outra coisa, como mulheres que lidam com o corpo, ela sendo enfermeira, tem uma paixão demasiada por artes visuais e isso nos mina muitos preconceitos, ela poderia ser racista com Atticus, ainda mais vendo ele matar suas companheiras de profissão, mas ela é amante das artes, entende a diversidade a partir dali, aquilo é seu ponto de fusão, é tanto que se apaixona e controla sua monstra.

Eu sei o que é ser apaixonada por artes visuais e entender o corpo como o elemento mais importante de qualquer narrativa/fotografia.

Ji-Ah, Lovecraft Country

Letitia Lewis (Jurnee Smollett)

Ela é uma personagem forte, né? Plenamente consciente do próximo segundo, vide o episódio 3 que ela quebra os carros, mesmo sabendo o que vai acontecer num futuro muito próximo dali. Ela é uma mulher que talvez seja difícil entender, mas para mim, o ser mais anarquista dali, quem é que monta uma moradia para negros/negras? Maior ocupação rolou ali e ninguém comentou quase nada sobre aquilo? Triste, né? Mas enfim, estou comentando, mesmo sem ficar claro o discurso político de Letitia, ela realmente tinha propostas para a comunidade negras dos EUA. Pelo menos para aqueles próximos e ela sofre por isso, é nítido. Mas assim como as demais mulheres, elas não abre mão de saber o que é, talvez por ela ser uma mulher negra “padrão”, feminilizada, pele mais clara, super estilosa, fotógrafa, ter cenas de sexo com Atticus, a gente esqueça do ser político que Letitia representa, mas representa e muito, também é a mulher mais científica da série e ainda acho que é a mulher mais científica da série, poderia ser Hippolyta, mas Hippolyta já não pode ser mais tudo o que Letitia pode ser. Espero que vocês não girem em torno só da mãe do filho de Atticus, sendo que nem ela usa muito desse discurso na série.

Letitia Lewis, Lovecraft Country

Yahima (Monique Candelaria)

Yahima, Lovecraft Country

Me impressiona muito como indígenas são deixados de lados nas narrativas, não nessa série, claro, sendo que responsabiliza Titus por dizimar a “comunidade” Arawak. Talvez por isso Yahima tenha morrido, a gente cria muitos laços com quem nos coloniza, porque eles são dominantes, mas porque Montrose matou ela? Não sei dizer direito, queria poder falar com exatidão, mas seria também racismo? Ela poderia ajudá-los, aliás, ela ajudou a traduzir Titus, não foi? Mas porque os negros não as veem como alinhada? Ou seria ela?

Diana Freeman, Jada Harris

Diana pode ser tudo aquilo que essas mulheres foram e principalmente o que não foram.

Por ela ser nerd, por ela poder ter tempo de poder fazer escolhas e olhar para cada mulher ali e tirar o quer quer de cada uma, ainda mais se juntar isso com suas leituras e suas criações que nunca foram recusadas pelos adultos, elas apenas estavam ali e ok, ela pode ser muito melhor dentro daquela realidade, inclusive mais cruel, para você ser cruel, você precisa de recursos, no caso, a mão de ciborgue pode ser um dos recursos para fazer crueldades, não é?

Claro que isso faz menção ao Manifesto Ciborgue da Donna Haraway. Tão adorado por algumas feministas e tão questionados por outras feministas, eu estou nos dois grupos, adoro e odeio. Fico um pouco com medo de defende isso plenamente, sabendo que defende a transgressão das fronteiras dos humanos x máquinas, sendo que há reproduções misóginas, vide ciborgues sexuais que apresentam um modelo de mulher ideal que a gente luta contra, quem é que consegue ter produção massivas de ciborgues se não aqueles que lutamos contra? Olha eu, mais uma vez falando desse maldito manifesto comunista… ops… ciborgue.
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Portanto, a série para mim atendeu a proposta de mostrar a diversidade de mulheres e acima disso, uni-las, sei lá aquele final delas no carro, sabe e a única companhia de Diana sendo um super cachorro e sua mão, mostrando que a “injustiça” pode ser resolvida através do uso de máquinas, isso que a Donna defende a grosso modo, será que Diana também? Parece que sim, sabe porque?

Como Diana diz:

“Ainda não aprenderam…”

Máquinas não tem piedade.

Diana Freeman, Lovecraft Country

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Written by gi del fuoco

Como me ensinaram a linguagem, vou usá-la afiada.

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