Apenas Meninas (2021) — o casamento infantil é a morte da menina e da mulher
Bom, eu não sei nem por onde começar. Porque documentários são diferentes, né, são vidas reais, histórias reais, pessoas, meninas e mulheres reais. Logo, vou começar pelas minhas certezas: o casamento é uma instituição que nos mata porque nos aprisiona no modelo da mulher que eles criaram.
Nenhuma menina quer casar. A menina é levada a desejar isso, não só por filmes da Disney onde a princesa é beijada por um estranho, ou porque brinca com suas bonecas ou porque se inspira no modelo mais próximo de ser menos pobre que é o projeto de se casar.
Eu sei que a gente pode achar que o casamento é mais amor que outras coisas, mas não, o amor não precisa ser sustentando por uma instituição. Não é o amor que leva ao casamento, é a necessidade, que na maioria das vezes essa necessidade é financeira. Emma Goldman discute isso desde o início do século XX, ela nunca se casou, mas sempre amou muito.
Essas meninas nunca souberam o que é amor. As grandes vitimas desse Brasil que ocupa o 4º lugar no ranking mundial de casamento infantil não sabem o que é amor. Olhando para cada história me faço e me permito me atentar nisso, pois todo o resto é consequência disso.
É um ciclo.
Famílias desestruturadas > falta de atenção plena > revoltas sem causa para chamar atenção > frustração > negação > fuga > institucionalização de tudo isso > casamento > gravidezes = tudo em busca de uma estabilidade emocional.
É triste, não é? Saber que muitas das vitimas de casamento infantil são filhas de mãe solo. Que muitas vitimas de casamento infantil sofreram violência sexual dentro do seu lar. Que muitas vitimas de casamento infantil são consequências de um sistema que não se importa com a criança e adolescente. Esse tipo de menina precisa existir para que o casamento seja ainda visto como um local seguro, protetor e de boa moral.
O grande problema é que para o esse casamento infantil dar certo, precisa vir acompanhado de uma gravidez. Fica a pergunta: a gravidez acontece porque elas precisam logo negar a sua infância e adolescência e se tornar “uma mulher casada” ou por falta de proteção à infância e a adolescência?
Proteção essa que deve ser feita com muita informação, inclusive sobre maternidade compulsória.
Minhas alunas adoram me perguntar: “o que você acha da maternidade compulsória?”
A minha resposta sempre será a mesma e escrevo aqui para você que está me lendo: no Brasil e no mundo, a maternidade compulsória sempre será maior para mulheres pobres. A maternidade compulsória não é apenas iniciada quando temos um “desejo inexplicável” de sermos mães. Mas a maternidade compulsória quando passam a validar uma mulher pobre quando ela quer ter filhos ou não, antes disso, a maternidade compulsória começa quando mulheres pobres não tem acesso à informação, não sabem como se proteger, não sabem o que é consentimento, não sabem, não sabem, não sabem… logo se veem em uma posição de sujeição; começam a fazer sexo cedo demais achando que estão exercendo sua sexualidade, quando na verdade estão só sendo sujeitas ao sistema que já esperava isso delas.
Não me impressiono os diálogos de pais e mães com suas filhas que estão na puberdade: “se você engravidar te expulso de casa!”; “se você tiver um filho, eu que não vou cuidar!”… punindo-as antes mesmo delas entenderem o que pode acontecer.
Corpos de meninas começam a ser punidos muito cedo.
Claro que existe meninos que são vitimas do casamento infantil, é óbvio, mas em questões de números, é um local feminino, a menina se torna a maior vitima, ela pode gerar filhos, elas são as que devem cuidar dos seus irmãos, ela é que sempre deve abrir mão de si para a existência do outro.
Se doar.
Se vender.
Dissociar.
O que sobra? Quais serão suas histórias? Fico pensando nisso também. Como é saber que te obrigaram a ser algo que você não gostaria de ser ou nunca nem pensou em ser. Só se “naturalizou” e te culparam por uma natureza que eles mesmo dizem existir — casar e ser mãe.
Olhem esses dados:
A cada 21 minutos uma menina de 10 e 14 anos está se tornando mãe.
Bianca Lenti, diretora do documentário, escolheu cuidadosamente cada depoimento, deste a parte técnica às entrevistadas. Você se sente ali. Você sente. Talvez por conta do nosso sexo, junto a identificação da classe, podia ser muitas de nós, onde o mundo vê que a mulher pobre sempre vai ser pobre, porque o casamento e a maternidade os deixam mais pobres, porque dificulta a independência financeira. Todas essas violências são baseadas no nosso sexo também, o casamento infantil tem um processo de feminização (onde o sexo feminino é a maioria presente) e a gravidez, bom, são meninas e mulheres que engravidam.
O mais interessante é que o Casamento Infantil se dá por inúmeros fatores. O que leva essas meninas a se casarem? A gente ao ver o documentário pode ter inúmeras respostas, já falei da falta de estrutura familiar. Mas também há o depoimento de Agnes:
“É moralmente horrível uma menina nova ficar grávida e não ter um marido. Só que ninguém vai na discussão mais profunda de porque nós, enquanto adolescentes, precisamos casar ou ser mãe para ter um lugar de poder na sociedade, ter alguma legitimidade de algo. Tenho a sensação que, antes disso, eu era um sujeito invisível. Acho que se eu fosse estimulada a produzir outras coisas pra minha vida, com certeza não teria casado”, disse ela.
“Todas as meninas selecionadas para o documentário já viviam uma situação de vulnerabilidade extrema. De forma geral, as meninas que não têm acesso à educação e ficam restritas ao universo doméstico sofreram ainda mais privações de necessidades básicas durante a pandemia”, explica Bianca Lenti em entrevista à Elástica.
Há também o caso das meninas que se entendem como lésbicas quando jovem, por falta de aceitação de sua família, passa a sofrer inúmeras violências psicológicas, saem de casa e, para sobreviver, acabam se casando com um homem que tem estabilidade financeira. Isso pode entender também como heterossexualidade compulsória que é de extrema violência nesse caso.
E é por isso que proteção à infância e à adolescência deve ser pauta feminista.
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O documentário está disponível em HBO Max, avisem eles que a Historiadora Radical que indicou.
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